Um traçado ferroviário de mais de 4 mil quilômetros promete interligar o litoral brasileiro ao Pacífico, passando por regiões de alta relevância produtiva e estratégica da América do Sul.
Conhecido como corredor ferroviário bioceânico, o projeto prevê a conexão entre o Porto de Ilhéus, na Bahia, e portos no Peru ou no Chile, cruzando o Centro-Oeste do Brasil, a Bolívia e os Andes.
Trata-se de uma iniciativa que combina ambição geopolítica, interesse comercial e o desejo de superar os gargalos históricos da infraestrutura sul-americana.
O tema voltou à pauta com força durante a NT Expo 2025, em um painel que reuniu representantes do Brasil, da Argentina e especialistas em logística. O consenso foi claro: a proposta é viável, desde que sustentada por decisão política, cooperação internacional e visão estratégica de longo prazo.
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Conexão além dos oceanos
Mais do que unir os oceanos Atlântico e Pacífico, o corredor visa construir uma nova malha de integração regional.
Segundo Jean Carlos Pejo, secretário-geral da ALAF Brasil, o grande objetivo é a interconectividade entre os países da América do Sul: “Temos de tudo no continente, mas a integração é mínima. Isso se deve, em grande parte, à ausência de infraestrutura”, declara.
Atualmente, o comércio entre países sul-americanos representa uma fração do que poderia ser.
De tal maneira, a proposta do corredor não é apenas logística, mas estratégica: estimular cadeias produtivas, criar novos polos econômicos e garantir autonomia regional frente a disputas comerciais globais.
O papel da China e os interesses geopolíticos
O projeto ganhou impulso em 2014, com um acordo entre Brasil, China e Peru para desenvolver estudos de viabilidade liderados pela China Railway Corporation (CRC).
Desde então, o cenário geopolítico mudou: os Estados Unidos retomaram o controle do Canal do Panamá e a China inaugurou, em 2024, o Porto de Chancay, no Peru, com capacidade para movimentar até 6 milhões de contêineres (TEUs).
“Esse porto não foi construído apenas para o Peru. Ele precisa de carga e de conexões logísticas com o interior do continente”, explicou João Carlos Parkinson, diplomata do Ministério das Relações Exteriores.
Para ele, a retomada do projeto ferroviário torna-se ainda mais urgente diante da saturação dos portos brasileiros e da crescente demanda da Ásia por alimentos, minerais e energia.
Viabilidade técnica e ambiental do corredor ferroviário bioceânico
A infraestrutura ferroviária envolveria regiões sensíveis da Amazônia, áreas indígenas e os Andes, o que impõe grandes desafios de engenharia, sustentabilidade ambiental e custos elevados.
Elaine Radel, coordenadora da INFRA S.A., destacou que o cenário atual é mais favorável do que o de 2016, quando o estudo inicial foi finalizado.
“Hoje temos o porto de Ilhéus em funcionamento, a Fico e a Fiol avançando e novas possibilidades de integração com a hidrovia do Madeira e a Ferrogrão. O momento exige uma atualização dos estudos, mas o projeto continua viável e estratégico”, afirmou a executiva.
Alternativas de traçado e múltiplos acessos
Embora o traçado via Peru tenha ganhado protagonismo nos últimos meses, há defensores de uma rota pelo Chile, ligando Santos (SP) a Antofagasta, passando por Bolívia e norte da Argentina — rota favorecida pela bitola métrica já existente.
“Estamos há mais de uma década discutindo essa alternativa, que exige bem menos obras e investimentos”, criticou Vicente Abate, representante do setor ferroviário.
Para os especialistas, o mais importante não é definir um único ponto de chegada ao Pacífico, mas multiplicar as opções logísticas para o escoamento de cargas.
De acordo com eles, isso permitiria otimizar custos, ampliar o acesso a mercados internacionais e descentralizar a dependência de portos saturados como Santos e Paranaguá.
Um esforço multinacional
A integração ferroviária depende de mais do que engenharia. José Villafane, da ALAF Argentina, foi enfático: “Sem o envolvimento total do Brasil, o corredor bioceânico não passa de uma utopia.” Ele ressaltou a necessidade de alinhar tarifas, regras aduaneiras, normas técnicas e segurança jurídica entre os países envolvidos.
Além disso, destacou experiências de integração na América Central e no México, que já opera um corredor interoceânico sob gestão da Marinha, com previsão de transportar mais de 1 milhão de contêineres por ano. “O México está fazendo, e nós podemos também, desde que os Estados estejam comprometidos”, disse.
Corredor ferroviário bioceânico: do sonho ao plano estratégico
O corredor ferroviário bioceânico deixa de ser utopia quando é tratado como projeto de Estado — com governança compartilhada, financiamento estruturado e visão de longo prazo.
Parkinson reforçou: “O que distingue um projeto comercial de um projeto estratégico é a capacidade de responder a desafios permanentes dos países”.
O Brasil, por sua vez, já projeta um aumento expressivo na produção agrícola até o fim da década — dos atuais 330 milhões para 500 milhões de toneladas anuais.
“Se não avançarmos em concessões portuárias e novos eixos ferroviários, teremos gargalos ainda maiores nos portos e nas rodovias”, alertou o diplomata.
Realidade em construção
Entre custos, riscos e benefícios, o corredor bioceânico promete ser um divisor de águas na integração latino-americana. A proposta pode trazer ganhos logísticos, impulsionar o comércio intra-regional e abrir novos caminhos para a presença global dos países sul-americanos.
“É um projeto de longo prazo, com retorno diluído, mas que pode transformar economias locais, fomentar novas cadeias produtivas e fortalecer nossa posição geopolítica”, resumiu Elaine Radel. Para ela, os fundamentos estão dados: há vontade política crescente, estudos técnicos acumulados e parcerias em articulação.
O desafio agora é sair do papel e construir, com trilhos e diplomacia, uma América do Sul mais conectada, soberana e competitiva.