O marco regulatório ferroviário brasileiro está passando por uma transformação que busca equilibrar eficiência operacional, transparência e competitividade.

Sob a coordenação da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o novo conjunto de normas redefine as bases da regulação de transportes, com foco em segurança jurídica, fortalecimento das concessões ferroviárias e valorização da participação social nos processos decisórios.

Além de garantir os direitos dos usuários e aprimorar a qualidade dos serviços, o novo modelo visa atrair mais investidores e operadores privados para o setor, estabelecendo um ambiente regulatório mais estável e previsível.

José Manoel Ferreira Gonçalves, engenheiro, advogado, jornalista e presidente da FerroFrente, conversou conosco e nos ajudou a entender como essas mudanças podem impulsionar o futuro das ferrovias no Brasil. Acompanhe a seguir!

As principais mudanças propostas pela ANTT no novo marco regulatório

José Manoel explica que a pauta do debate é uma modernização ampla da regulação ferroviária brasileira. Neste novo cenário, a ANTT busca atualizar conceitos que ficaram defasados desde os primeiros contratos de concessão, nos anos 1990.

“Agora, a ideia é criar um conjunto de regras que traga mais clareza sobre direitos e deveres de quem usa e de quem opera as ferrovias”, afirma o entrevistado.

Um dos avanços mais importantes, segundo Gonçalves, é a criação de um sistema de proteção e representação dos usuários, com canais mais ágeis para resolver conflitos e garantir um serviço adequado.

“Também está sendo redesenhada a classificação dos tipos de usuários, incluindo figuras como o investidor e o dependente, o que permite diferenciar necessidades e responsabilidades”, complementa.

Além disso, estão sendo definidos parâmetros objetivos de qualidade, indicadores de desempenho e maior transparência nas chamadas operações acessórias (como carregamento, abastecimento e armazenagem).

“O objetivo é equilibrar a relação entre usuários e operadores, dar previsibilidade e estimular eficiência, sem travar os investimentos privados”, ressalta.

O impacto dessas mudanças para usuários, concessionárias e investidores

Se bem implementadas, José Manoel enxerga um divisor de águas com as mudanças.“Para o usuário, significa ter mais instrumentos de defesa e participação, além de acesso mais claro às informações sobre tarifas, prazos e qualidade dos serviços. Isso fortalece o setor produtivo que depende da ferrovia para escoar a produção”, explica.

Já para as concessionárias, o entrevistado acredita ser uma oportunidade de profissionalizar ainda mais a gestão e mostrar resultados com base em indicadores técnicos, e não apenas contratuais.

“Claro que haverá uma cobrança maior por eficiência e transparência, mas isso faz parte da maturidade regulatória”, comenta.

E para os investidores, abre-se um novo campo: “A figura do usuário investidor permite que empresas que dependem da ferrovia possam participar diretamente da expansão da infraestrutura. É um modelo que combina o interesse privado com o interesse público – e que, se bem desenhado, pode reduzir gargalos logísticos e atrair novos capitais”, observa.

trilhos com diferentes tipos de vagões ferroviários

O diálogo com a sociedade sobre as novas mudanças

Conforme o presidente da FerroFrente, a ANTT vem abrindo o processo para o diálogo, algo visto como positivo. Contudo, é fundamental que essa abertura se transforme em prática efetiva.

“As consultas e audiências públicas são importantes, mas ainda insuficientes se o debate continuar concentrado em Brasília e restrito a quem tem acesso institucional”, opina.

José Manoel acredita que é preciso garantir transparência real, com divulgação antecipada e ampla de todas as propostas, minutas e estudos de investimento, para que a sociedade, os técnicos e os usuários de cada região possam se manifestar de forma informada.

“Esse processo deve ser de baixo para cima, ouvindo quem vive a ferrovia no dia a dia e não apenas uma formalidade burocrática”, analisa.

Segundo ele, a criação de conselhos de usuários e comissões tripartites é um passo importante, porque permite um espaço permanente de mediação e construção coletiva.

“Mas o desafio é fazer com que esses espaços realmente funcionem, sejam respeitados e produzam resultados concretos. Sem transparência, representatividade e continuidade, tudo corre o risco de ficar no papel e o Brasil já viu isso muitas vezes acontecer”.

O que esperar do futuro: próximos passos

O desafio agora é dar um passo além: ampliar o escopo do marco regulatório.

“Não basta apenas revisar normas. É preciso integrar a regulação ferroviária a uma política nacional de transporte que dialogue com concessões, investimentos, logística e sustentabilidade. A ferrovia não pode continuar sendo tratada de forma isolada, como um sistema à parte”, analisa o especialista.

Na opinião de Gonçalves, esse novo momento deve reunir concessionárias, investidores e usuários em torno de uma agenda comum, com metas claras de eficiência, competitividade e transparência.

“O país precisa de uma regulação que estimule a cooperação entre os atores, e não apenas a relação contratual”, destaca.

Mas é preciso ir além da técnica. O próximo passo, para José Manoel, precisa ser mais ousado. “Isso é algo que nós, da FerroFrente, defendemos há muitos anos e apresentamos agora como contribuição formal da sociedade civil junto a consulta pública da ANTT: empoderar os usuários, tanto de carga quanto de passageiros, em todas as concessões do país”, conta.

Ele explica, inclusive, que a proposta dos Conselhos Gestores Ferroviários nasce exatamente dessa visão.

“Defendemos que cada concessão tenha um espaço institucional permanente de escuta e deliberação, com cronogramas de reuniões trimestrais, presença da ANTT, das concessionárias, dos municípios e da sociedade organizada”.

Para o especialista, o novo marco deve enxergar a ferrovia como parte de um sistema integrado, conectado a políticas de transporte, infraestrutura, logística e sustentabilidade.

“E, acima de tudo, deve colocar o cidadão no centro: o trabalhador, o produtor, o passageiro. Porque uma ferrovia só cumpre o seu papel quando serve às pessoas e às regiões que corta”, conclui.

Ao construir um ambiente regulatório com essa visão mais integrada, social e estratégica, o Brasil finalmente poderá transformar a sua malha ferroviária em um instrumento real de desenvolvimento sustentável e de cidadania.